terça-feira, 2 de dezembro de 2008

um dia na vida

Desde que me tornei um desabrigado, em razão das fortes chuvas que assolaram a "Europa Brasileira" (sic), estou a residir na casa de Srta. K.M., que gentilmente se dispôs a me abrigar.

Algumas tolhas velhas foram geometricamente dispostas no chão da lavação, as quais me servem de cama. Em uma das extremidades de meu colchão improvisado, algumas cuecas descartadas pelo patriarca da família foram amontoadas, servindo-me de travesseiro. Do lado direito do "colchão", pode se ver duas caminhas redondas aonde dormem os dois cachorrinhos da família. São dois cãezinhos poodle, aquela raça de cachorro apreciada por madames do mundo todo.

Hoje acordei, devia ser uma 10 horas. Fui o último a acordar na casa, então tomei café sozinho. Banheie-me rapidamente e peguei uma carona com Srta. K.M., que estava indo trabalhar, até a FURB. De lá, caminhei até o terminal da PROEB, pois precisava pegar um ônibus para ir até o centro, eu precisava ir no banco e devolver um DVD no shopping para minha amasia, Srta. K.M. Enquanto eu caminhava da FURB até o terminal, dois fatores dificultavam minha marcha solitária: um sol do cacete torrando o mundo e o fato de eu ter que andar no meio da rua, já que não havia uma única calçada entre a FURB e o terminal que não estivesse coberta por 10 cm de lama. Sério.

Num dia quente como esse, eu deveria ter saído de casa de bermuda, mas, infelizmente, em razão das fortes chuvas que assolaram o "Coração do Vale" (sic), eu não tenho mais bermudas, então tive que sair de calça jeans mesmo, e o sol era tão quente que, mesmo de calça, eu podia sentir o suor escorrendo pelas minhas pernas cabeludas e minha careca precoce sendo impiedosamente fritada pelo sol escaldante. Fazia dez minutos que eu havia tomado banho e eu já tava todo suado, isso sem contar o cheiro de asa queimada. Sério.

Finalmente cheguei na porcaria do terminal de ônibus da PROEB. Perto da catraca de entrada, vi uma plaquinha informando o preço da passagem: "R$ 2,05", ela dizia. Me aproximei do guichê e dei R$ 5,10 para o tio, pois, como sou um cara muito altruísta, queria facilitar o troco do tio da catraca. Peguei meu troco, passei por uma catraca barulhenta. Agora estava dentro do terminal. Tudo tava bem sujo ainda, inclusive dentro dos lixeiros ainda havia barro. Quando fui guardar meu troco, pude verificar que o tio da catraca, provavelmente na falta de moedas de cinco centavos, havia me dado um golpe. Veja que a passagem custava R$ 2,05, sendo que eu havia dado pra ele R$ 5,10, logo meu troco deveria ter sido R$ 3,05. Ocorre que o tio, ao arrepio da legislação consumerista, devolveu-me apenas 3 reais. "Filho duma puta", pensei. "Maldito servo do consórcio maligno que detêm a concessão do transporte coletivo em Blumenau", refleti. Eu tava pronto pra aplicar um mata leão nele e fazê-lo se arrepender do dia em que ele surrupiou meus cinco centavos. "Que tipo de monstro subtrai, sorrateiramente, cinco centavos do troco de caras desempregados e desabrigados como eu?". Por certo, se ele fica com 5 centavos do troco de todo mundo que entra no terminal da PROEB todos os dias, em breve ele deve pedir demissão e se mudar para as Bahamas. "Mas pensando bem, quem pode culpá-lo por querer se mudar para as Bahamas, levando consigo alguns dólares para impressionar as nativas?", pensei. Resolvi, então, deixar quieto, afinal de contas, quisera eu largar meu emprego de merda e me mudar para algum paraíso tropical, assim como ele, possivelmente, pretendia.

Superada essa celeuma, resolvi tentar descobrir qual, dentre as milhares de linhas que passam por esse terminal, poderia me levar até o centro de Blumenau. Meu medo era pegar um ônibus errado e ir parar lá na puta-que-o-pariu, digo, em algum bairro longínquo e desconhecido para mim, um rapaz interiorano e com pouco dinheiro no bolso. A origem desse meu medo reside em um fato acontecido há muito tempo atrás, quando eu ainda era um jovem cheio de vida e sonhos. Naquela oportunidade, era umas 2 ou 3 horas da manhã e eu tinha saído de um local lá na Fortaleza onde havia rolado uma confraternização. Pra variar eu era o único gasparense e agora precisava voltar para Gaspar. Sai da parada e fui sozinho para um ponto de ônibus ali perto. O meu plano era pegar um ônibus qualquer, já que, na minha ingenuidade, pensava que todo ônibus de Blumenau passava perto da FURB ou do Centro, objetivando por lá pegar um Verde-Vale. Ledo engano. Quando eu vi, o ônibus tinha ido pra puta-que-o-pariu, digo, bairro da Velha e entrado dentro da Hering Ômino, isso mesmo, a porcaria do ônibus entrou dentro de uma fábrica lá na Velha, isso as 3 horas da manhã de um domingo. Na verdade, descobri da pior forma que tinha pego o ônibus errado. Pra minha infelicidade aquele era um ônibus que levava os escravos proletários até seus postos de trabalho nos rincões mais longínquos de Blumenau. Cara, eu demorei um bom tempo pra conseguir chegar em casa naquela noite.

Mas, enfim, enquanto pensava, vi um ônibus se aproximando da plataforma. Quase todo mundo no terminal foi em sua direção. Abordei um sujeito e perguntei se aquele ônibus passava pela rua 7 de Setembro. "Sim, 7 de Setembro", ele respondeu meio sem vida. Entrei no ônibus. Ele ficou socado, mas mais pessoas continuavam entrado a todo instante. Quando o ônibus finalmente estava saindo, uma negona entrou berrando "sai da frente da porta que eu quero entrar". Sério, ela berrou isso. Quase todo mundo começou a cochichar, maldizendo a mulher. O ônibus fechou as portas e iniciou seu trajeto. "Isso é uma vergonha, o velho em pé e o novo sentado. Isso tem que acabar em Blumenau", a negona começou a berrar de novo. Eu não conseguia vê-la, na real, eu mal podia me mexer, o ônibus estava muito cheio, mas eu conseguia ouvi-la berrando. "Lá em Itajaí isso também acontece, essa cambada de vagabundo tem que tudo morrer", ela voltou a berrar. "Essa cambada tem que mete dois tiro na cara! Eu já matei um e mato outro se precisar, mas eu sei que deus perdoa 'os pecador'", a negona concluiu aos berros. Todos se entreolharam e continuaram cochichando sobre ela. Dei graças à buddha quando pude saltar são e salvo no meu ponto, em frente ao Shopping Neumonster.

Atravessei a rua e fui naquela Agência da Caixa Econômica ali perto. Fiquei uma meia hora na fila, pois precisava fazer uma parada que só dava pra fazer no caixa normal e não no caixa automático. Feito o que eu precisava fazer ali, atravessei a rua e entrei no Shopping. Eu precisava fazer umas ligações. Eu não sei se já mencionei aqui, mas, em razão das fortes chuvas que assolaram o "Vale Europeu" (sic) nas últimas semanas, meu celular foi pro barro, literalmente. Sou o legitimo gasparense de baixa renda, morando de favor, andando de ônibus e procurando orelhões para fazer ligações.

Liguei, em seguida caminhei até o último ponto da Beira-Rio, aquele na frente da prefeitura. Eu precisava escanear um negócio no laboratório de informática da FURB. Peguei um daqueles ônibus articulados e saltei na Martin Luther. Escaniei o que precisava escanear. Meu plano agora era almoçar e pegar um Verde-Vale até Gaspar, eu tinha que pegar uns negócios com a minha mãe. Foi ai que me lembrei: "Puta-que-o-pariu-filho-da-puta"®, eu havia me esquecido de devolver o DVD da Srta. K.M. "Merda, eu fui na porcaria do Shopping e me esqueci de devolver a porcaria do DVD", pensei. Almocei na cantina da FURB e sob o sol escaldante voltei a pé pro terminal da PROEB. Peguei a mesma linha que eu tinha pego antes, a 31, pois com ela eu tinha certeza de que iria parar na Rua 7 e não na porra da Velha ou qualquer outro bairro escroto de Blumenau. Se tu for ver, em Gaspar é muito mais fácil, o nome de quase todos os bairros é alguma variação da palavra Gaspar: gasparinho, gasparinho quadro, gaspar grande, gaspar mirim. Com certeza o Dr. Gaspar não foi tão criativo quanto o Dr. Blumenau, mas pelo menos não há como se perder de ônibus em Gaspar as 3 horas da manhã.

Mas, enfim, peguei o mesmo ônibus e saltei no mesmo ponto, defronte ao Templo do Capitalismo local e devolvi o maldito DVD.

Como é minha sina, mais uma vez, lá estava eu sentado numa porcaria de ponto de ônibus esperando por uma porcaria de ônibus. Agora eu precisava dum Verde-Vale, eu precisava ir a Gaspar pegar uns negócios com a minha mãe. O problema é que eu não fazia idéia de quando o próximo Verde-Vale viria, mas sentei ali no ponto do Shopping e esperei mesmo assim. Não sei se eu já comentei aqui, mas em decorrência das fortes chuvas que assolaram a região, meu Ipobre foi pro barro, literalmente, então, como eu não tinha música para escutar, lamentei ser um jovem proletário e rezei para que um dia deus deixasse eu ganhar um carro na Casa Feliz®, nada de muito chique, podia ser um Uno Mile mesmo, ou melhor, uma daquelas motinhos que fazem 100 quilômetros com um litro.

Passados uns 30 minutos, ao longe avistei um grande veículo verde claro, com pequenos detalhes em verde escuro e laranja se aproximando. Sorri de alegria e joguei as mãos ao céu em agradecimento. Bem dito seja o Senhor Jesus Cristo, lá vinha o Verde Vale. Nada traz mais felicidade para um proletário gasparense do que ver, após horas de espera, um Verde-Vale se aproximando no horizonte e finalmente poder ter a certeza de que, em breve, receberá os afagos da mãe amada. Eram 14:30.

Acontecimentos irrelevantes.

Saltei no penúltimo ponto da Beira Rio. Segundo Srta. K.M., eu deveria pegar um 12 (PROEB-Aterro via Esc. Agrícola) para retornar a sua casa. E, ao que parece, o 12 só para no penúltimo ponto da Beira-Rio. Isso era umas 18 horas e havia gente pra caralho no ponto. Mal eu sabia que todos pretendiam pegar o mesmo ônibus que eu. Era bem na hora do Rush isso e o ponto fica perto de uma sinaleira, então a Beira Rio tava cheia de carros naquele trecho. Era triste ver todos aqueles burgueses em seus carros climatizados nos olhando com o "rabo do olho", num misto de dó e deboche. Nunca entendi essa relação burguesia-ar condicionado. A impressão que tenho as vezes, é que a única oportunidade em que esses caras saem de seus ambientes climatizados é no caminho casa-carro e carro-trabalho e trabalho-carro e carro-boteco de bacanas, e assim para sempre. Qual a graça disso eu me pergunto. Não é a toa que suas maiores alegrias advêm de coisas como comprar celular cheio de funções inúteis ou comprar carros que fazem 10 litros por quilometro.

Mas, enfim, após uns 15 minutos, todos começaram a se agitar e a se aproximar do meio fio, lá vinha o 12. Velho, se tu acha que o estudante da 22 horas é paulera, tu precisa ver o 12 da 18 horas. "Vo ti dize pra ti"®, ali sim os fracos não tem vez. Eu não sei como coube tanta gente dentro daquela merda de ônibus. Sério. Depois desse ponto, o ônibus só parou no ponto seguinte, mas ninguém conseguiu entrar, então ele só voltou a parar no terminal da Proeb. E da Beira Rio até a PROEB eu fiquei absolutamente esmagado entre a catraca e uma gordinha. Na real é impossível explicar com palavras a afronta que andar nesse ônibus naquele horário representa para a dignidade da pessoa humana e todas as outras garantias constitucionalmente garantidas. Pra ti ter noção, do lado da cadeirinha da cobradora tinha uma guriazinha sentada na cadeira preferencial, sendo que, em pé, na frente da guria tinha uma velha. "Vai ver ela não viu", você pode pensar. Mas a verdade é que a cobradora pediu pra guria dar o lugar pra velha e a guria cagou e andou. Lamentável. Por mais que eu possa falar mal do estudante das 22 horas, pelo menos lá, eu tenho quase certeza que eu um jovem deixaria um velho sentar no seu lugar.

E mais, quando o ônibus parava pro pessoal desembarcar, ele tava tão socado que a galera não conseguia chegar na porta de saída, então a cobradora berrou lá do seu troninho "vamo dá um passinho pro lado pessoal, vamo se afastar da porta". Em resposta, alguem berrou anonimo do meio da multidão "o 'maleducada'", em coro outros falaram "vamo da um passinho pra onde? não dá nem pra se mexer aqui dentro". "Eu vou ter que pedir mais uma vez pra vocês sairem da frente da porta, porra", a cobradora berrou em resposta. Sério. Era uma selva lá dentro. Jurei pra mim mesmo que iria pegar o vermelinho da próxima vez.

Um comentário:

Augusto Radtke disse...

O que eu mais gosto desse gasparense, é que ele pode estar na merda, ou na lama literalmente, mas não perde o senso de humor, muito menos como escolher a camiseta ideal para a ocasião ideal.

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