quarta-feira, 18 de março de 2009

Marcenária no Bela Vista

Enquanto novo morador do Bela Vista, bairro que esta para Gaspar e Blumenau, como a Faixa de Gaza esta para a Palestina e Israel , seja pelos violentos conflitos armados, seja pela disputa por sua dominação entre os municípios supra mencionados, agora estou finalmente livre daquela empresa que, a revelia da lei, detêm o monopólio do transporte de seres humanos entre a Galhota-Gaxxpar-Plumenau.

Aspectos positivos: a) Ônibus de 15 em 15 minutos; b) ponto de ônibus quase na frente de onde eu moro; c) maior proximidade com a metrópole/menos tempo de viagem; d) horários de ônibus que obedecem à lógica e ao bom senso; e) passagem mais barata;

Aspectos negativos: a) pessoas malucas; b) pessoas que não tomam banho; c) cobradores com a camisa meio aberta, expondo seus torsos esquálidos/obesos, suados e peludos; d) pessoas muitos malucas que nunca tomam banho; e) ter que pegar dois ônibus pra chegar na FURB;

Mas enfim, em razão dessa nova circunstância de miserabilidade, ontem fui ao centro de Blumenau adquirir passe escolar. O bagulho, como diria um carioca com quem tive o desprazer de dividir um quarto por um mês, ficava moqueado na face lateral externa do “Xops Noimarketis”. Ainda do lado de fora, já pude ver, através das portas de vidro adesivadas com caucasianos jovens, magros e felizes, o caos que era o negócio. Sério, tinha nego “saindo pelo ladrão” tamanha a quantidade de gente dentro da parada. Em contraste com as imagens estampadas no vidro, eu, um caucasiano, jovem e magro, não estava nada feliz com aquilo. Mas enfim, com muito esforço entrei, peguei uma senha e, tamanho o abismo existente entre a estrutura disponibilizada e a pretensão burocrata do Consórcio Siga, esperei por uma hora e trinta minutos para ser atendido.

Uma hora e meia de espera pra comprar passe é uma daquelas situações que, normalmente, teriam desencadeado minha fúria colérica contra empresas de ônibus malignas. No entanto, pude ouvir uma conversa ao lado que me fez esquecer, por alguns minutos, o quão miserável é a minha miserável existência.

Lá estava eu, sentado em uma porcaria de banco sem encosto, numa porcaria de sala sem ar-condicionado ou qualquer outro tipo de mecanismo que propiciasse algum tipo de circulação de ar e cercado por um número incontável de pessoas, das quais, muitas, não tomavam banho. Assim como eu, todos os demais infelizes aguardavam ansiosos que suas senhas fossem chamadas num painel eletrônico no fundo da sala.

Em dado momento, duas moças se sentaram do meu lado esquerdo. Pelo que pude captar dos diálogos iniciais, elas tinham dezoito anos, mas ainda freqüentavam a escola. Veja que elas também estavam ali para comprar passe de ônibus escolar. Pelo sotaque, fisionomia e pela terra roxa nas solas do pé, conclui que elas haviam vindo do Paraná há pouco tempo.

Digamos que seus nomes fossem Guria X e Guria Y. Guria X era mais faladeira, não calava boca, enquanto que Guria Y era mais quieta, mal falava. Normalmente só respondia aos impropérios de Guria X mexendo com a cabeça ou emitindo algum gruindo mono-silábico.

Após algumas conversas sobre o tramite na aquisição de passe escolar, Guria X abriu um jornal que trazia consigo. Na verdade não era um jornal inteiro, mas só um caderno qualquer de um jornaleco qualquer. Na capa de mencionado caderno, havia uma foto aérea de uma favela que ilustrava uma manchete sobre “mercenários no Rio de Janeiro” ou qualquer coisa do tipo.

“Mercenários no Rio de Janeiro”, Guria X lê em voz alta para Guria Y ouvir.

Como lhe é característico, Guria Y se resume a assentir com a cabeça.

“Mercenário?”, Guria X indaga Guria Y.

Guria Y faz que não sabe erguendo os ombros.

“Mercenário é de marcenaria, né. Que mexe com madeira.”, conclui Guria X em voz alta para Guria Y ouvir.

Guria Y faz que concorda mexendo a cabeça.

“É, mercenário-marcenária”, Guria X diz, orgulhosa de seu domínio do português culto.

“É”, respondeu Guria Y.

Em seguida, Guria X inicia um monologo sobre algo que não prestei atenção, pois eu estava ocupado fazendo uma anotação mental para tentar me recordar de cada detalhe da conversa que eu acabara de ouvir.

Mas antes mesmo que eu pudesse terminar, ouvi Guria X falando algo do tipo:

“(...) é, por que é mais fácil compreender um bicho, do que o homem. É...”.

“Ahn?”, perguntou Guria Y.

“É, por que se eu falar em grego, ninguém vai me entender. Só vão me entender se eu falar em brasileiro (...)”, afirmou Guria X, com ar de antropóloga sabichona.

“Ai, nada a ver”, sabiamente respondeu Guria Y.

Iniciou-se, então, uma acalorada discussão sobre esse tal de idioma brasileiro e suas diferenças com o idioma grego.

Mais uma vez, retomei minha linha de pensamento, repetindo em minha mente as sabias assertivas de Guria X.

Passados mais alguns minutos, resolvi retornar minha atenção as paranaense, pois a conversa havia evoluído. O brasileiro havia sido deixado de lado. Agora conversavam sobre a Grécia.

“Greco-Romano”, Guria X pensou em voz alta.

“O que que tem?”, perguntou Guria Y.

“Grego, romano, é tudo a mesma coisa”, concluiu a historiadora Guria X.

“Aié”, sabiamente discordou Guria Y.

“Claro. Até porque, a arte grega é romana”, seja lá o que isso quer dizer, esse foi o argumento utilizado por Guria X para tentar convencer Guria Y, que sua afirmação sobre gregos e romanos serem a mesma “coisa” era verdadeira.

Depois disso, só me lembro que minha senha foi chamada e eu me dirigi ao guichê indicado, deixando para trás a espertalhona Guria X e a austera Guria Y.

Quem sabe algum dia voltarei a vê-las. Quem sabe mês que vem, quando eu for comprar passe ou em alguma agência da Caixa no próximo dia 5. Quem sabe. Quem sabe...

PS: A única coisa que eu sei, é que pelos seus conhecimentos históricos, elas só podem morar no Bela Vista e terem sido pupilas do titular da cadeira de história da Escola Básica Arnaldo Agenor Zimmermann, Professor Monk.

Nenhum comentário: